Verónica P. Aravena Cortes (UMESP)

A imprensa e a problemática construção de um mundo comum no Brasil*


Resumo:

 

As idéias de Habermas e Hannah Arendt norteiam uma discussão sobre a construção da esfera pública no Brasil. Para o filósofo, a esfera pública é uma zona de discurso tendo em vista o bem comum, para a autora é o lugar do "mundo comum", do aparecimento e da visibilidade e por conseguinte da política: um espaço reconhecido de opinião e de ação. Para visualizarmos a configuração de esfera pública brasileira, escolhemos a cobertura de dois episódios recentes na imprensa paulista, nos jornais Folha de S. Paulo e Estado de S.Paulo, e nacional, nas revistas Veja, Isto É e Época. Analisaremos as notícias veiculadas sobre o conflito entre árabes e israelenses, no último mês de abril, e sobre a invasão pelo MST da fazenda dos filhos do Presidente Fernando Henrique Cardoso em Minas Gerais em março deste ano.

Palavras-chave:
Esfera pública, imprensa, notícia.

Nas sociedades contemporâneas o indivíduo está exposto a um fluxo ininterrupto de informações veiculadas pela mídia. Dentre os veículos, a imprensa se destaca, uma vez que os assuntos que se tornam manchete, entrarão na roda de discussões nacional. É sempre pertinente refletir acerca desta instituição e sobre as conseqüências da omissão e da manipulação das informações no processo de transformas os fatos em notícia, pois está em jogo não apenas uma visão de mundo, mas o próprio mundo que se constrói.
Para articularmos a relação entre mídia e política inicialmente discutiremos algumas idéias de Habermas e de Hannah Arendt. Suas considerações teóricas sobre o espaço público servir-nos-ão de referenciais para problematizarmos mídia e, mais especificamente, para analisarmos as notícias veiculadas pela grande imprensa, o que será realizado logo a seguir.
Na comunicação, o pensamento de Habermas ganhou destaque, mas a nosso ver há certas idéias de Hannah Arendt que mereceriam mais atenção, sua concepção de mundo comum e talvez outro conceito que lhe é anterior, sua visão da política. A socióloga Vera Telles lembra que, no pensamento da autora, a política não se define exclusivamente por referência ao Estado, mas antes como uma forma de sociabilidade, ou seja, um espaço que cria suas próprias regras e seus próprios critérios, pelos quais os acontecimentos e os constrangimentos da vida em sociedade podem se fazer visíveis e inteligíveis para os que dela participam. (1999, 67)
Pensar a política como um espaço de sociabilidade e, como tal, de discussão e visibilidade poderia nos levar a reapropriarmos da própria coisa pública. A política foi associada ao Estado, no entanto esta esfera não é onipotente e muito menos autônoma, a esse respeito o historiador Claude Lefort observa que para que uma demanda de direitos ganhe inscrição jurídica, não é suficiente que "tal ou qual reivindicação encontre os ouvidos complacentes do Estado, é preciso que ela se beneficie antes ... do acordo mais ou menos tácito de uma importante fração da opinião pública, enfim, que ela se inscreva nisso que chamamos de espaço público" (1991). Acreditamos que entre nós essa idéia é bastante perceptível justamente pelo seu avesso: no Brasil existem leis que "não pegam". Isto decorre de certas leis não encontrarem um substrato na opinião pública. Outras leis começam a "pegar" apenas devido ao constrangimento de punições, tal como a multa: a obrigatoriedade do uso de cinto de segurança é um exemplo.
Cabe já dizer que para os dois pensadores o espaço público se transformou, o que trará conseqüências na vida cotidiana e na própria forma de fazer política, para Habermas, após a introdução de novas dinâmicas, tais como a publicidade e, para Hannah Arendt, a própria vida moderna estaria desfazendo o espaço público.

A política como ação e como discurso: qualificando o espaço público
Habermas caracteriza a esfera pública como uma zona de discurso, na qual idéias são conhecidas e debatidas e uma visão de bem comum pode ser expressa. O autor se remonta ao século XVIII para situar um período crucial da esfera pública, neste século, a imprensa se constitui na sua instituição por excelência, uma vez que tinha o papel de difundir mas também de reconfigurar as discussões sociais. O princípio básico da esfera pública seria legitimar a pressão social exercida sobre o poder do Estado, transcendendo a mesma relação de força (1984, 233). Teria como meta a transformação de interesses de indivíduos privados em um interesse público comum, e, desta forma, universal.
No momento em que a imprensa se comercializa a relação se transforma, pois se cria um "portão de entrada de interesses privilegiados na esfera pública". Sua estrutura se altera, ao invés de opinião pública, aclamação, o próprio debate ganha a dimensão de espetáculo. Criam-se consensos, dos quais a população é excluída: "um público de cidadãos, desintegrado enquanto público é de tal maneira mediatizado por meios publicitários que, por um lado, pode ser chamando a legitimar acordos políticos sem que, por outro lado, ele seja capaz de participar de decisões efetivas ou até mesmo de participar." (1984, 258)
Na nossa memória ainda está fresco o recente apelo à participação da população no momento de crise de energia em 2001 para que demonstrasse sua cidadania e economizasse energia; em 2002, a recompensa veio na forma de um aumento de tarifas para compensar a projeção de lucros não obtidos pelas companhias distribuidoras, uma vez que a energia não foi fornecida devido ao racionamento.
Habermas compara o processo de construção de consensos ou de "fabricação" da opinião pública ao utilizado pelos mecanismos de relações públicas.
"Naturalmente, o consenso fabricado não tem a sério muito em comum com a opinião pública, com a concordância final após um laborioso processo de recíproca Aufklärung (esclarecimento), pois o "interesse geral", à base do qual é que somente seria possível chegar a uma concordância racional de opiniões em concordância aberta, desapareceu exatamente à medida que interesses privados a adotaram para si e a fim de se auto-representarem através da publicidade". (1984, 228-229)
Hoje vivenciaríamos uma situação paradoxal, o equilíbrio de interesses continua subordinado à pretensão liberal do bem comum, sem satisfazê-lo, mas também sem poder escapar totalmente a ele.
Para Habermas a transformação da esfera pública trouxe inequívocas perdas. Ao perder a sua base na comunidade, a esfera pública perdeu sua clara delimitação com relação à esfera privada, por outro lado, a crescente integração entre Estado e sociedade, tem promovido a perda da dimensão política da esfera pública: hoje ocorre um intercâmbio direto de favorecimentos e indenizações particulares, sem passar pelo processo institucionalizado da esfera pública política. Nesse sentido evaporou-se sua transparência e abrangência. (1984, 238)
Por outro lado, tendo como ponto de partida uma reflexão sobre a barbárie do nazismo, Hannah Arendt constrói um conceito chave para pensar o papel da mídia nas sociedades contemporâneas, a noção de um "mundo comum", esta se constitui em uma dimensão crucial do espaço público. E, para a autora, o espaço público é o espaço do aparecimento e da visibilidade - "tudo o que vem a público pode ser visto e ouvido por todos"- e essa visibilidade pública é o que constrói a realidade. O espaço público é construído pela ação e pelo discurso. Ação significa "dar início a um novo começo", mas esta necessita um espaço de aparecimento e do testemunho dos outros para que ganhe significado: o espaço público é o lugar que preserva a ação do esquecimento. Todas as coisas não comunicadas e incomunicáveis, que não foram nunca confiadas a ninguém, deixam de existir, pois "não há para elas um lugar permanente na realidade". (1991)
A vida pública adquire significado no ser visto e no ser ouvido. "Ser visto e ouvido por outros é importante pelo fato de que todos vêem e ouvem de ângulos diferentes" (1991, 67). A experiência da pluralidade permite transcender a vida pessoal de cada um, mediante a prática do diálogo, esta permite a construção de referências cognitivas e valorativas que por sua vez articulam os homens numa trama possibilitando a criação de um horizonte comum de interlocução possível.
Vera Telles nos lembra que em Hannah Arendt, as dimensões cognitiva e valorativa do mundo comum qualificam os "critérios através dos quais se torna possível discernir o relevante do irrelevante, o legítimo do ilegítimo, o justo do injusto, assim como a verdade da mentira, o fato da ficção." (1999, 46)
No pensamento de Hannah Arendt, a narração ganha importância, uma vez que ela é uma espécie de reificação através da qual os acontecimentos ao serem partilhados, ganham significado. Hoje é a mídia que monopoliza esta dimensão de permanência e durabilidade.
A vida moderna tem trilhado o caminho da dissolução desse espaço público, esta pode ser observada em três diferentes registros:
1. a perda de um "mundo comum". Esta significa a perda de um espaço comum entre os homens, comprometendo a capacidade de discernimento e compreensão e o julgamento que exigem, enquanto maneira especificamente humana de se fazer a experiência e a realidade. Nesta dimensão pode-se concluir que a perda do espaço público significa a perda dessa relação objetiva com os outros homens e com isso, a perda mesma de uma noção de realidade.
2. No retraimento para a subjetividade. Significa a privação de um sistema comum de pertinência a partir do qual, a existência de cada um pode ser reconhecida como algo dotado de sentido e relevância para os demais, ou seja, num mundo partilhado de significados. A dissolução do espaço público conduz à impossibilidade de uma tradição ser criada ou refundada, e, sem o amparo da palavra e da memória, o acontecimento se volatiliza num tempo privado de significação humana.
3. Num registro político, significa a perda de um espaço reconhecido de ação e opinião.
Hoje vemos a exaltação da própria subjetividade que tende a fazer dos interesses e sentimentos privados a medida de todas as coisas e de acordo com Hannah Arendt, o mundo comum acaba quando é visto somente sob um aspecto e só permite uma única perspectiva.
Neste pensamento, direitos como trabalho, moradia e mesmo a vida não são o cerne da questão, o problema é ter condições para reivindicar esses direitos e escapar das contingências da natureza. O problema tampouco diz respeito à liberdade de pensamento, pois sem um espaço, isto é, uma comunidade que torne significativas as opiniões de cada um, essa liberdade é equivalente à "liberdade de um louco, porque nada do que se pense pode importar a alguém". (1998, 328-330)
É triste constatar que a história está repleta de exemplos de grupos que não parecem relevantes e que estes não cessam de se multiplicar no presente. As comunidades indígenas, os negros no continente americano durante séculos, os palestinos nos últimos 50 anos, a maioria dos países da África e o nosso país vizinho, a Argentina, entre muitos outros que como Quixotes vagueiam sem ser ouvidos.
Esta é uma medida de democracia. Sociedades democráticas se caracterizam pela existência de sujeitos com o direito à palavra e à ação e próprio direito aparece como sujeito a uma constante reinterpretação. Já em sociedades totalitárias, o discurso do poder é auto-suficiente, ele ignora toda palavra que esteja fora de sua órbita.
O mundo comum produzido pela mídia
Como vimos, a mídia, pelo seu poder simbólico, tem uma dupla dimensão cognitiva e valorativa: nos mostra o mundo, mas não apenas isto, coloca até o sentido em que este mundo será visto pelas pessoas, articulando aquilo que será problema no espaço público. Há inúmeros exemplos recentes: a cobertura da guerra contra o Afeganistão, na qual a morte de civis foi "encarada como efeito colateral da luta contra o terror", o golpe de Estado na Venezuela, um momento em que, coisa rara, a informação unilateral foi rapidamente desmascarada, quando a força da realidade surpreendeu o mundo. No cenário nacional também há destaques: a presença emblemática de notas empilhadas sobre uma mesa no escândalo da Lunnus que conduziu à desarticulação da campanha de Roseana Sarney, um discurso da violência que se limita aos delitos praticados pelos pobres, ou melhor, que situa os delitos praticados pelos pobres na editoria Polícia e os das elites na Política...
Para debatermos estas idéias e visualizarmos a configuração de nossa esfera pública, escolhemos a cobertura de dois eventos pela imprensa paulista, nos jornais Folha de S. Paulo e Estado de S.Paulo, e no âmbito nacional, representada pelas revistas Veja, Isto É e Época. Analisaremos as notícias sobre o conflito entre árabes e israelenses no momento da visita do secretário de Estado ao local e sobre a invasão da fazenda dos filhos do Presidente Fernando Henrique Cardoso em Minas Gerais em março deste ano.

O mundo em nossos lares
As informações sobre aquilo que ocorre no mundo são bastante escassas e pobres na grande imprensa, sendo evidente um alinhamento com os EUA e com os organismos internacionais do establishment mundial. Outros países fora do eixo EUA-Europa despontam nos veículos apenas pelo lado do exótico ou catastrófico. A esse respeito são eloqüentes as observações do jornalista José Arbex, a partir de sua experiência como correspondente internacional na Folha de S.Paulo "a mídia nacional (...) adotou uma linha colonizada e provinciana, limitada a refletir a percepção da mídia americana". (2001, 190)
O conflito entre árabes e palestinos só ganhou de fato espaço na mídia por uma via tortuosa. Após o atentado do dia 11 de setembro de 2001, o mundo árabe ganha status de área estratégica para o governo Bush. Naquele momento, o governo norte-americano passou a necessitar o apoio destas nações para sua cruzada contra o "terrorismo". O eixo do mal estava claramente delineado: Afeganistão, Iraque, Sudão... Vale lembrar que as nações do mundo são conclamadas a participar, pois a política internacional entra na fase do lema de faroeste: "quem não está conosco está contra nós". Mas eis que a questão palestina salta como um espinho atravessado na garganta no mundo árabe.
A mídia brasileira desde o início da nova escalada de violência após a provocação do então líder de extrema-direita Ariel Sharon na esplanada das mesquitas em Jerusalém, em outubro de 2000, repetia a fórmula "novo atentado terrorista em Israel" ou "homem-bomba faz tantos mortos". Mas em abril deste ano, quando o governo Bush decide se envolver no conflito, o assunto ganha destaque quase diário e merece uma edição especial na revista VEJA.
Hoje temos uma imprensa francamente favorável a Yasser Arafat, até mitificando o presidente da Autoridade Palestina. O vemos como único interlocutor legítimo para o ocidente, mas Sharon o isolou em sua residência em Ramallah em condições precárias, Arafat ameaça morrer como mártir. A mesma imprensa está contrária a Sharon, caracterizado como provocador e belicista, hoje, o primeiro ministro provoca genocídios contemporâneos, dificulta a vistoria de organizações internacionais e não "obedece" seu padrinho político, os EUA, que lhe pedem um cessar-fogo .
É interessante observar algumas manchetes que nas primeiras páginas dos jornais:
Estado:
Atentado mata 15 e Israel amplia ofensiva (01.04)
Israel revista casa por casa e prende 700 em Ramallah (02.04)
Bush pede a Israel que saia das cidades palestinas (05.04)
Sharom aos EUA: parem de pressionar Israel (11.04)

Folha:
Israel ataca e invade QG de Arafat (30.03)
ONU exige que Israel saia de cidades palestinas (31.03)
Terrorista suicida mata 14 em Israel (01.04)
Israel invade 4 cidades e prende 700 (02.04)
Israel sitia 200 palestinos na Basílica de Belém (04.04)

O número 1746 de 10 de abril deste ano da Revista Veja apresenta o tema A guerra no oriente médio e sua manchete de capa enuncia: A MARCHA DA INSENSATEZ. Em 23 páginas propõe-se a desvendar os meandros do conflito. Vêem-se inúmeros mapas, gráficos e listagens, no entanto está ausente a própria contextualização dos fatos.
A matéria destinada a pensar a visão israelense do conflito se concentrou na figura de seu primeiro ministro, ganhando a manchete "A Fúria Suicida" e iniciou o texto com a afirmação "Ariel Sharon está feliz da vida", um pouco mais adiante prossegue "está fazendo o que sempre quis fazer: implodir todas as possibilidades de um acordo de paz que, para merecer esse título precisa permitir a criação de um Estado palestino viável".
Supostamente para entender o lado palestino foi elaborada uma matéria que se intitula "Os suicidas furiosos", nela vemos informações sobre os quatro grupos "radicais" que lançam mão do terrorismo, pois não apenas querem conquistar um território palestino, mas também desejam "a destruição de Israel e a formação de um Estado islâmico, nos moldes que existem no mundo árabe". Destacam-se as organizações "terroristas", pouco se fala da própria população. Trabalha-se com a seguinte equação: palestinos-fanáticos-suicidas.
É significativo que o momento de inflexão do enfoque dos jornais ocorre quando o governo norte-americano "endurece com Sharon" e anuncia o envio à região do Secretário de Estado, Colin Powell. Lê-se no Estado: "Israel deve parar de humilhar os palestinos, diz Bush" (05.04). A partir de então, a cobertura passa a mostrar uma luta desigual e dar voz àqueles que falam em genocídio, como o escritor português Saramago. As fotos mostram tanques e soldados bem armados e protegidos, por um lado, e pessoas indefesas, com a dor estampada no rosto, cercadas de ruínas, de outro.
Arafat, outrora caracterizado como irascível e responsabilizado por ataques de "terroristas suicidas", em 2000 foi responsabilizado de negar-se a colaborar com o processo de paz ao não aceitar o acordo oferecido pelo presidente Clinton e o então primeiro-ministro israelense Ehud Barak, durante as negociações de Camp David. Hoje sabemos que Barak, então pintado como um democrata, multiplicou o número de assentamentos nos territórios palestinos e que jamais fez uma oferta por escrito para resolver o problema dos assentamentos israelenses.
É interessante notar que o conflito ganha visibilidade no momento em que as preocupações do país hegemônico se deslocam para o Oriente e que embora os árabes e islâmicos ainda sejam associados a fanáticos terroristas suicidas, hoje, o massacre de palestinos em Jenin faz parte das experiências dos habitantes deste mundo e a causa palestina já participa de nosso mundo comum.

O Brasil na imprensa: o conflito Agrário
A presença da questão agrária na imprensa brasileira nos permite visualizar as dimensões cognitiva e valorativa presentes no conceito "mundo comum" de Hannah Arendt. O tema merece análises minuciosas, mas aqui nos limitaremos a um episódio recente, cuja cobertura foi reveladora.
No domingo 24 de março deste ano, o Brasil acordou com a notícia da "invasão" da fazenda dos filhos do Presidente em Buritis, Minas Gerais, ocupação largamente anunciada, como pressão para obtenção de uma audiência com o governo. A ação durou 22 horas, a saída dos militantes foi negociada por ouvidores agrários que foram traídos pelo governo federal, pois ao invés de serem recebidos pelo Ministro do Desenvolvimento Agrário, conforme prometido, foram algemados, humilhados, presos e processados.
Uma imagem abria a cobertura de todos os veículos analisados: a foto de militantes dos sem-terra muito à vontade na sede da fazenda, sentados nos sofás, vendo televisão ou falando ao telefone.
No dia 24 de março, o jornal O Estado de S.Paulo registrava no alto da 1a página, a manchete "Para governo, invasão da fazenda é terrorismo", um tom belicista acompanhava as imagens, na legenda da segunda foto se lia "CERCO - governo anunciou o deslocamento de 300 homens para a região de Buritis", nela os manifestantes pareciam ameaçadores, dispostos a lutar, um olhar atento captaria que suas armas eram paus erguidos. Nos dias que se seguiram o Estado fez uma suíte intitulada "A Invasão" que durou até o dia 30 de março. Na semana que se segue à ocupação, o Estado publica três fortes editoriais. Os títulos evidenciam as idéias do jornal:
O MST copia o PCC (26.03)
O terrorismo previsível do MST (25.03)
Tolerância zero com o MST (29.03)
O Estado reproduziu em suas páginas o discurso das autoridades governamentais, do presidente, de seus ministros, juristas, da PF, entre outros. As ações do MST são qualificadas por estes atores como "terrorismo", "abuso inaceitável", "cenas de vandalismo", "eleitoreiras", "puro banditismo", e "preocupantes", uma vez que os "ativistas conhecem técnicas de guerrilha". O jornal aponta "falhas de informação" no governo. Veicula-se a versão oficial sobre a questão da terra: "o governo FHC já expropriou mais terra do que todos os outros governos". As notícias primavam pelo lado policial: a enumeração dos delitos, um levantamento dos antecedentes criminais dos envolvidos etc. A única voz dissonante foi a do presidente do Supremo Tribunal Federal, Marco Aurélio de Melo, que "condena a ação da polícia", de sua fala se destaca: "Acho que a PF não chegou à violência física, mas a uma humilhação terrível" (26.03).
Nesse jornal, o discurso de líderes do MST está quase ausente, concede-se espaço apenas para José Rainha que surge como mentor da ação "José Rainha falou aos companheiros que causaria grande repercussão" (25.03) e no dia 27 de março, no interior do caderno de política vemos a manchete, "Rainha some da fazenda ao saber de possível prisão", a matéria ocupa quatro colunas até o pé da página, pelas fotos "somos informados" que "invasores destroem parte da plantação de soja da fazenda Santa Maria para abrir uma clareira (...) e improvisar um campo para jogar futebol".
A cobertura do evento pela Folha dura até o dia 29 de março, no entanto o tema paulatinamente vai perdendo destaque. Nos dois primeiros dias, observa-se uma manchete no alto da 1a página, depois cai de posição, no dia 28 desaparece da 1a página. No dia 25 de março, o jornal descreve a humilhação dos militantes, passo a passo, são quatro fotos que recebem as seguintes legendas: a triagem, a revista, a voz de prisão, os 16 presos. Embora exista o predomínio das falas governamentais, a cobertura procura ser mais pluralista, apresenta a visão do candidato do PT à presidência da República, da Pastoral da Terra, da advogada dos Sem-terra, do líder do movimento no Distrito Federal, entre outros. Durante a semana são publicados dois editoriais, "Estúpida invasão" (26.03) e "As repostas do PT" (28.03)
Uma semana após o ocorrido, as revistas publicaram matérias longas (com 6 páginas). A Veja sentenciou "Os sem-limite atacam de novo" e no alto da matéria destacou, de um lado, as palavras do ministro da Justiça, Aloysio Nunes Ferreira "Evidente que é um ato político-eleitoral. O MST é correia de transmissão do PT. É por essas e outras que o PT não vai ganhar a eleição para a Presidência da República." Do outro lado estavam as palavras e a foto de Lula "Eu fiquei me perguntando a quem interessava aquela ação. Ao MST não interessava. Ao PT ou à CUT, não interessa. Então, a quem interessa?". Esta abertura já mostrava a polarização da reportagem.
Na revista Época encontramos a manchete "O banquete dos Mendigos", o texto indica que "Líderes do MST produzem cenas de banditismo enquanto miseráveis se esbaldam na fazenda de Fernando Henrique". A matéria foi articulada em torno a uma dualidade na implementação da ação: líderes que conduziram "um ato de barbárie política e uma demonstração de selvageria sindical" e uma massa de manobra. Um quadro destaca a "Orgia do MST. O tamanho do estrago promovido pelos invasores". A matéria estabelece um "perfil" dos "invasores" e apresenta seu comportamento na fazenda, as "230 pessoas recrutadas para figurar na operação vagavam pela casa como se estivessem numa Disneylândia do poder (...) viu-se por ali uma mistura de cenas de encantamento com outras de vandalismo de baixo nível, que agride, incomoda e provoca mal-estar".
A manchete da IstoÉ destacou "Invasão. João Pedro Stédile, líder do MST, sobre cenas destas páginas: "Foi uma cagada". A revista foi a única a publicar uma foto e uma entrevista com o líder, o foco da reportagem foram as repercussões da ação para a campanha do PT e o grau de vinculação do movimento ao partido. Do movimento, além de Stédile, José Rainha, do qual se publicou sua polêmica declaração sobre o PCC "o propósito da ação do PCC é errado, mas a tática é um instrumento impecável. Devia ser seguida pelos movimentos de massa".
Em todos os veículos encontramos associados ao MST verbos como invadir, ameaçar, destruir, improvisar. Alguns como o Estado insistiram na linha do "terrorismo" ou do "banditismo", outros apresentaram um acento moral, o banquete dos pobres causa "mal-estar", eles não têm paladar para aproveitar iguarias. Cabe destacar que o termo "terrorismo" entrou em nosso universo semântico após os atentados de setembro de 2001, como sinônimo de barbárie e mal, outrora se utilizaria a expressão "comunista". Em nenhum momento os veículos questionaram o Estado de direito ou o direito à propriedade, ou mesmo as terras griladas ou a concentração da terra no Brasil, o campo ainda expulsa trabalhadores e a reforma agrária conduzida pelo ex-ministro Raul Jungmann não foi suficiente para reverter este problema.
Considerações finais
Acreditamos que mais do que Habermas é Hannah Arendt que nos fornece munição para pensar a nossa imprensa. Hoje é muito claro que certos eventos passam a ter "existência" para nós à medida que são veiculados pela mídia, como é o caso do conflito entre palestinos e israelenses. Por outro lado, ao contrário do que pregoam os manuais de redação, os acontecimentos são apresentados numa dimensão valorativa, a sucinta análise da cobertura da ocupação da fazenda de familiares do Presidente pôde comprová-lo.
No Brasil, é um eufemismo afirmar que o espaço público está se dissolvendo, o melhor seria dizer que ele nunca existiu. Há uma grande parcela da população que não parece relevante, cujas demandas não parecem significativas para a nação. Nossa mídia não se posiciona como um espaço de debate, mas exclui perspectivas e ações do cenário, em muitos casos, limita-se a reproduzir a visão governamental do mundo. Há momentos em que a construção da informação conhece limites, quando os fatos por sua força acabam se impondo como notícia. Se a questão é demasiado pungente, como a questão agrária, o que vemos? Desqualificação dos adversários, no caso, o grupo é associado ao terrorismo e ao banditismo e a análise de suas ações adquire um enfoque moralista. Pobre bom é aquele que conhece o seu lugar. Pobre bom não reclama, faz parte da paisagem. No Brasil, os miseráveis não têm direito à palavra e menos ainda à ação, suas ações chocam, o que nos leva a constatar que estão fora do mundo comum.
Para José Arbex o "maior problema, para o pensamento crítico, é tornar visível não apenas o oculto, censurado ou ausente como texto ou imagem, mas o que as tecnologias da informação tornam aparentemente visível por um processo de exposição extrema que, fingindo tudo mostrar, de fato nada revela. A "engenharia do consenso" opera com armas muito mais sutis e eficazes do que a censura bruta: sua matéria-prima são nossos próprios preconceitos e convicções, assim como nosso temor de enfrentar a instabilidade em um mundo cada vez mais complexo". (2000, 205)
Discutir a imprensa é crucial, pois este consenso fabricado, esta visão unilateral do mundo, centrada na subjetividade de uns poucos não tem nada a ver com uma base democrática, antes revela uma democracia formal numa sociedade totalitária.
BIBLIOGRAFIA
ARBEX, José. Showrnalismo. São Paulo, Casa Amarela, 2001.
ARENDT, Hannah. A Condição Humana. São Paulo, Edusp, 1991.
----- Origens do Totalitarismo. São Paulo, Companhia das Letras, 1998.
HABERMAS, J. Mudança estrutural da esfera pública. Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 1984.
LEFOR, Claude. Pensando o político: ensaios sobre democracia, revolução e liberdade. Paz e Terra, 1991.
TELLES, Vera. Direitos sociais. Afinal do que se trata? Belo Horizonte, Editora UFMG, 1999.